Peculiaridades do manejo da via aérea em contexto da COVID-19

Tempo de leitura: 8 minutos 

A disseminação da infecção pelo vírus SARS-CoV 2, inicialmente identificado na província de Wuhan, na China, com caracterização de pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no início de março de 2020, trouxe para equipes de saúde com atuação em urgências e emergências novas recomendações  e cuidados em relação a via aérea.

Para mais informações sobre a COVID-19, acesse nosso texto: Coronavírus: perguntas e respostas.

A evolução em alguns casos para insuficiência respiratória hipoxêmica e necessidade de ventilação mecânica torna a intubação orotraqueal (IOT) um procedimento com relativa frequência e altamente transmissor nesse contexto por mobilizar secreções com elevada carga viral em pacientes infectados.

Para mais detalhes sobre a intubação orotraqueal, acesse nosso texto: Os cenários e critérios de indicação da intubação orotraqueal.

A IOT em pacientes críticos é de particular gravidade: 10% dos pacientes apresentam hipoxemia grave (SpO2 < 80%) e 2% parada cardiorrespiratória.

Atualize seus conhecimentos sobre atendimento na parada cardiorrespiratória com nosso texto: AHA 2020: atualizações das diretrizes de RCP e ACE.

O sucesso da IOT em primeira passagem é estimado em menos de 80% sendo que em até 20% dos casos são necessários mais de duas tentativas. Esses fatores revelam a importância de cuidados especiais tanto pela gravidade do paciente em si quanto pela capacidade de formação de aerossóis e possível contaminação da equipe.

A intenção desse texto é trazer as principais recomendações em relação aos cuidados no manejo da via aérea nestes pacientes sendo um complemento à leitura do manejo da via aérea em pacientes críticos.

Complemente sua leitura com informações sobre intubação orotraqueal com nosso texto: Como identificar a via aérea difícil antes da inbutação orotraqueal.

A técnica de intubação em sequência rápida e seus “7 passos” acrescida de algumas modificações é recomendada para abordagem da via aérea em Unidades de Terapia Intensiva e Departamento de Emergências. Os objetivos principais que precisam ser destacados envolvem aumentar as chances de sucesso de primeira passagem com proteção da equipe e paciente além de evitar a contaminação e propagação do vírus durante o procedimento.

Muita atenção para equipamentos básicos de proteção individual sem os quais o procedimento não poderá ser realizado como: máscara N95 ou equivalente, protetor ocular e/ou facial, gorro, capote impermeável, sapatos fechados e luvas de procedimento. 

1) Preparo

Se possível, a intubação deverá ser realizada em leito de isolamento respiratório e pressão negativa pelo profissional com mais experiência presente, objetivando sucesso em primeira passagem. Uso de “checklists” para pacientes suspeitos ou confirmados e kits de intubação incluindo dispositivos de resgate e cricotireoidostomia, são incentivados pelas sociedades que atuam nessa linha de cuidado.

A organização da equipe com revisão das funções, planejamento das etapas, manejo de falhas e preparo dos materiais antes da entrada na sala é fundamental. Um número reduzido de profissionais (ex. médico, enfermeiro e fisioterapeuta) para atenção ao paciente tem sido recomendado a fim de minimizar exposição. Além disso, um segundo profissional para intubação deve aguardar fora da sala para atuar em caso de via aérea falha.

Como já tradicionalmente incorporada ao “P” do preparo, a decisão das medicações e suas preparações já devem ser definidas antes do procedimento. Material não essencial deve ser mantido fora da sala. Alguns profissionais têm utilizados caixas de acrílico por volta da cabeça do paciente onde os membros superiores ganham acesso a via aérea através de entradas circulares semelhantes a uma incubadora.

Alguns itens de destaque
  • Dispositivo bolsa-válvula-máscara (BVM) com Filtro EPA/HME;
  • Se disponível, videolaringoscópio para laringoscopia indireta: o laringoscópio a ser utilizado deve ser aquele que fornecerá a maior taxa de sucesso para o intubador.
  • Ficar o mais longe possível da via aérea que permita visualização adequada das estruturas.
  • Ventiladores e conectores já montados em sistema fechado com filtro EPA/ HME posicionados de acordo com especificações do fabricante;
  • Se disponível, capnografia em forma de onda para avaliação do posicionamento do tuboendotraqueal;
  • Clampeadores para tuboendotraqueal.

Falhas e atrasos aumentam as chances de dispersão por aerossol, além de hipóxia e parada cardiorrespiratória. 

2) Posicionamento

O correto posicionamento visa o alinhamento dos eixos laríngeo, faríngeo e oral do paciente com o campo de visão do médico o que pode ser obtido através da flexão do pescoço (posição olfativa) e a extensão da cabeça do paciente, não havendo contraindicação a mobilidade cervical. Demais ajustes são realizados com a laringoscopia.

Geralmente tal posição é facilitada por um coxim de aproximadamente 10 cm na região occipital sendo o marco da posição correta identificar, após correto posicionamento do coxim, o meato acústico externo e o osso esterno ao mesmo nível. Não há recomendação específica relacionada ao manejo da via aérea na COVID-19 em relação ao posicionamento.

3) Pré Oxigenação

Fase essencial. Recomenda-se oferecer ao paciente fonte de oxigênio suplementar com fração de O2 inspirada (FiO2) em 100% em fluxos baixos a moderados (10-15 L/minuto) em máscara com válvula não reinalante. Além disso, evitar ventilar o paciente sempre que possível e sempre utilizar o dispositivo BVM com filtro HEPA/HME.

Geralmente 3 a 5 minutos são suficientes.

O uso de Ventilação Não Invasiva (VNI) ou Cateter Nasal de alto fluxo, importantes estratégias em casos de hipoxemia grave, deve levar em conta os riscos de dispersão de aerossóis e não têm sido recomendadas como estratégias de uma forma geral nesse cenário. Em casos de hipoxemia refratária, pode ser utilizado o dispositivo BVM com boa vedação, filtro HEPA/HME e válvula para PEEP.

Lembre-se que um leve aclive (ex. trendelenburg reverso) pode melhora a oxigenação. Enfatiza-se evitar ao máximo ventilar o paciente nesse contexto, mas se necessário atentar para a montagem do dispositivo com filtro e máxima vedação possível. 

4) Pré-medicação

Os agentes alfa adrenérgicos como a Adrenalina (5 a 20 mcg) e Fenilefrina (50 a 200 mcg) podem ser utilizados no pré-tratamento em cenários clínicos de instabilidade hemodinâmica, principalmente em pacientes sépticos. Antes de avaliar seu uso, a administração de cristaloides, quando indicado, podem melhorar as condições de intubação nesses pacientes. Importante destacar a recomendação de se evitar fluido em excesso por piores desfechos em pacientes que evoluem para síndrome do desconforto respiratório do adulto. 

Outro medicamento que pode ser utilizado, sendo enfatizado na abordagem da via aérea em COVID-19, é a Lidocaína, com o objetivo de inibir reflexo de tosse. Evidências sobre esses efeitos e seus desfechos em relação a IOT por sequência rápida são inconsistentes. Quando usada a dose preconizada é de 1,5 mg/kg endovenosa, geralmente administrada entre 2 a 3 minutos antes da passagem do tubo.

Cuidado deve ser tomado em pacientes com Bloqueio Atrioventricular Avançado, por risco de parada cardíaca nesse contexto.

Vasopressor em infusão contínua (Norepinefrina) pode ser necessário antes ou após administração das medicações na sequência rápida sendo interessante manter suas soluções já preparadas previamente.

5) Paralisia com indução

O objetivo aqui envolve rápido efeito sedativo e paralítico com inibição do reflexo de tosse. Assim têm sido utilizadas doses elevadas de bloqueadores neuromusculares como 2 mg/kg de Succinilcolina ou 1,5 mg/kg de Rocurônio. Assegurar o bloqueio neuromuscular completo antes da passagem do tubo é fundamental.

Em relação aos sedativos/ hipnóticos destaque para a Cetamina (1-2 mg/kg) e Etomidato (0,2-0,3mg/kg) por melhor perfil hemodinâmico pós IOT.

Sedativos/Hipnóticos
  • Etomidato (0,2-0,3mg/kg)

Agente hipnótico que atua em receptores GABA produzindo anestesia. Muito útil por efeito hemodinâmico praticamente nulo quando utilizada doses para intubação.

Possui latência de 30 segundos e duração de 3 a 10 minutos, o que é bastante razoável para as premissas da sequência rápida. Por ser um derivado imidazólico, possui potencial em reduzir os níveis séricos de cortisol e consequentemente insuficiência adrenal. Entretanto a melhor evidência clínica disponível não corrobora tal possibilidade como contraindicação ao uso da droga.

Não possui efeito analgésico devendo-se considerar o uso de opióides no pré-tratamento caso o cenário clínico demande bloqueio da exacerbação simpática da laringoscopia.

  • Cetamina (1-2mg/kg)

Agente anestésico dissociativo e analgésico com uso crescente na sequência rápida (ISR). Possui latência de 45 a 60 segundos e duração de 10 a 20 minutos.

A Cetamina vem ganhando destaque em cenários clínicos de labilidade ou instabilidade hemodinâmica por estimular receptores catecolaminérgicos aumentando frequência cardíaca, contratilidade miocárdica, pressão arterial média e fluxo cerebral. Ela também permite a manutenção do drive respiratório e analgesia, não sendo necessário opióides como pré-tratamento.

Atenção para casos de Síndrome Coronariana Aguda, nos quais o efeito contrátil pode aumentar demanda de oxigênio e isquemia.

Para mais detalhes sobre síndrome coronariana aguda, leia nosso texto: Aprenda a identificar a síndrome coronariana aguda.

Efeito em neurocríticos é controverso, pela possibilidade de aumento de pressão intracraniana principalmente em pacientes já hipertensos. Por fim, existem estudos sobre efeito broncodilatador direto ou via liberação de catecolaminas, mas não há indicação formal de qualidade na literatura.

  • Propofol (1-3mg/kg)

Fármaco hidrossolúvel que atua em receptores GABA causando sedação e amnésia sem ação analgésica. Possui latência de 45 segundos e duração de 5-10 minutos.

Causa supressão simpática, depressão miocárdica e vasodilatação periférica devendo ser evitado em pacientes limítrofes hemodinamicamente. Em pacientes estáveis, seu uso pode ser interessante em situações de broncoespasmo por reduzir a resistência em vias aéreas, e status epilepticus, por possuir ação anticonvulsivante.

Já em pacientes neurocríticos deve-se atentar para o efeito sobre a pressão arterial média e possibilidade de diminuição da pressão de perfusão cerebral.

  • Midazolam (0,1-0,3mg/kg)

Causa sedação e amnésia sem analgesia via receptores do complexo GABA. Possui latência de 2 a 5 minutos e duração de 15 a 30 minutos.

O fármaco é capaz de causar queda de pressão arterial média moderada limitando seu uso em pacientes hemodinamicamente comprometidos. Por esse perfil de piora hemodinâmica e tempo de latência elevado, para sequência rápida, o Midazolam deve ser evitado como droga indutora sempre que possível.

Se for a única opção, doses menores (0,1 mg/kg) devem ser utilizadas em pacientes instáveis. Possui efeito anticonvulsivante, que sempre deve ser contrabalanceado aos efeitos hemodinâmicos se optado por ISR em status epilepticus.

Bloqueadores Neuromusculares
  • Succinilcolina (2mg/kg) – Dose mais elevada que o usual.

Bloqueador neuromuscular despolarizante análogo da acetilcolina, muito utilizado devido à sua latência (45-60 segundos) e duração (6-10 minutos) curtas sendo ideal para a sequência rápida. Especial atenção deve ser dada para as situações de contraindicação ao uso de acetilcolina.

A droga é capaz de elevar os níveis séricos de potássio e deve ser evitada em determinados cenário pelo risco de hipercalemia fatal como Rabdomiólise, queimaduras extensas, hipercalemia grave, politrauma grave. Outra importante contraindicação é a história prévia ou familiar de hipertermia maligna.

  • Rocurônio (1,5mg/kg) – Dose mais elevada que o usual.

Bloqueador neuromuscular não despolarizante, o Rocurônio surge como alternativa a Succinilcolina. Ele também possui tempo de latência curto (60 segundos), entretanto com duração prolongada (30 -45 minutos) para a técnica em sequência rápida. É possível reverter seus efeitos em casos de falha da intubação e ventilação com uso do Sugammadex (16 mg/kg), mas o antídoto é pouco disponível e de preço elevado.

As últimas considerações em relação aos fármacos utilizados na ISR estão relacionadas à farmacocinética das drogas. É fundamental obedecermos ao tempo de latência das mesmas para que alcancem efeito desejado na hora correta

6) Passagem do Tubo

Como já comentado, deve-se dar preferência para o uso de vídeolaringoscopia com pessoa treinada e ser executada pelo profissional mais experiente. Uma observação aqui é importante: o laringoscópio a ser utilizado é o que forneça a maior probabilidade de sucesso em primeira passagem.

A vídeolaringoscopia em profissional treinado seria o método de escolha, entretanto possui técnica específica. Profissionais não treinados devem seguir o método que se sintam mais seguros. 

Recomenda-se o uso de bougie, independente da classificação laringoscópica, para otimizar as chances de sucesso em primeira passagem. Se necessário utilizar manobras de mobilização externa da laringe, sendo a “BURP” (Backward Upward Right Pressure) opção já validado em melhorar a laringoscopia. Passar o tubo sempre sob visão até cerca de 2cm das pregas vocais, a fim de evitar intubação seletiva. Inflar o cuff imediatamente após a passagem. 

 Ainda carecem de validação, mas tem sido utilizada a passagem de tubo ocluído com êmbolo de seringa de 20 mL já associado ao bougie ou fio guia, para diminuir ainda mais contato com secreções respiratórias.     

 A comunicação com a equipe é fundamental: o profissional responsável pela intubação deve comunicar à equipe dificuldades e em caso de insucesso declarar via aérea falha chamando por ajuda. O segundo profissional quando acionado deve sempre checar sua paramentação e proteção adequada e ter pronto um kit para cricotireoidostomia antes de entrar no local. 

Depois de declarada a intubação falha, inicia-se medidas de resgate de oxigenação. No cenário de COVID-19 têm se recomendado uso precoce de dispositivos supraglóticos, como a máscara laríngea, para se evitar ventilação com BVM.

Se utilizar a Bolsa-Válvula-Máscara (BMV), atentar para a vedação máxima possível bimanual, uso de filtro entre a máscara e o restante do dispositivo, e fluxo de O2 suficiente para encher o reservatório. O sucesso na ventilação permite reavaliar a estratégia e novo plano de ação, entretanto a situação “não intubo e não ventilo” indica via aérea cirúrgica de urgência através de cricotireoidostomia.

7) Pós intubação

 Após a passagem do tubo, insufla-se o cuff, o guia ou bougie é retirado, sem deslocar o êmbolo quando utilizado para vedação, e este só é retirado após clampeamento do tubo com pinça. Finalmente o tubo é conectado ao sistema de ventilação fechado ou dispositivo BVM com filtro e kit de aspiração fechado, e desclampado para início da ventilação sendo verificado seu posicionamento idealmente através de capnografia em forma de onda. Se não disponível a ausculta com avaliação de expansão torácica são alternativas.

 Reavaliar o quadro hemodinâmico do paciente pós intubação é fundamental, haja vista possível efeito medicamentoso hipotensor e diminuição do retorno venoso quando conectado a ventilação mecânica invasiva. Além disso, uma importante etapa aqui será aproveitar o paciente curarizado para avaliar melhor a mecânica ventilatória e estratégias de ventilação, haja vista que a infecção pelo SARS CoV-2 tem apresentando doenças pulmonares com diferentes mecânicas ventilatórias podendo-se beneficiar de abordagens individualizadas.

Sempre limitar desconexões do sistema e, se necessário, sempre clampar o tubo previamente e desconectar ao final da expiração. Idealmente o circuito entre ventilador e tubo deve ser montado para não ocorrerem desconexões para qualquer fim. Usualmente utilizamos de dispositivos adaptados para sucção e higiene brônquica em sistema fechado, que não necessitam desconexões (ex. “Trachcare”).

Cuidado também com início de sedação contínua adequada em situações de hipoxemia e para evitar desconexões desnecessárias ao ventilador. Avaliar invasão com acesso venoso central e acesso arterial para aferição de pressão arterial invasiva por julgamento clínico, tendo sido enfatizado, se indicado, aproveitar o mesmo tempo da intubação para realização de procedimentos invasivos.

Limpeza do ambiente exaustiva é recomendada após o procedimento. Cuidados na desparamentação são críticos para a não contaminação.

Considerações finais

As evidências em relação ao manejo de pacientes com COVID-19 estão em franca construção fazendo-se necessária a constante atualização sobre o tema. A maioria da literatura disponível ainda é estrangeira necessitando adaptações para a realidade nacional.

Referências

1 – London, MJ et al. Coronavirus disease 2019 (COVID-19): Airway management, anesthesia machine ventilation, and anesthetic care. Uptodate.2020

2 – Protocolo de intubação orotraqueal para caso suspeito ou confirmado de covid-19. AMIB.2020. Disponível em: https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/Protocolo_de_Intubacao_Orotraqueal.pdf

3 – Cook, TM et al. Consensus guidelines for managing the airway in patients with COVID-19. Anaesthesia.2020

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