Reconhecer o mecanismo de trauma associado à intensidade da lesão, sua localização e o estado hemodinâmico do paciente, determinam o direcionamento da melhor investigação diagnóstica e conduta.
Contudo, independente do tipo de trauma sofrido, a avaliação inicial de um paciente com trauma abdominal perpassa por princípios gerais que serão elucidados no decorrer deste artigo, e que, quando aplicados, têm o intuito de reconhecer lacerações, sangramentos, eviscerações e edemas.
Avaliação sistemática do abdômen
A avaliação abdominal segue uma ordem sistemática e seus achados, positivos ou não, devem ser bem documentados no prontuário do paciente.
Inspeção, ausculta, percussão e palpação
A inspeção abdominal deve ser realizada com o paciente despido. A procura de abrasões, lacerações, lesões causadas por dispositivos protetores – como cinto de segurança e airbag – ferimentos penetrantes e evisceração de epíplon ou intestino delgado, deve ser feita no abdome anterior, no tórax inferior e no períneo. Além disso, a inspeção das regiões de flanco, escroto, uretra e área perineal pode evidenciar a presença de sangue e edema.
É importante observar que uma fratura pélvica aberta pode cursar com laceração perineal, da vagina, reto ou nádegas. A manobra de rolamento deve ser utilizada para a inspeção do dorso do paciente. Ao finalizar a inspeção, o paciente deve ser coberto com protetores térmicos para evitar hipotermia.
A ausculta abdominal pode não evidenciar informações relevantes diante de uma emergência, uma vez que os múltiplos atendimentos em uma sala de emergência pode ser um empecilho à realização do exame e a ausência de ruídos hidroaéreos não é, necessariamente, um indicativo de lesão intra-abdominal.
Já a percussão é uma etapa importante, mas requer cuidado especial com o desencadeamento de dor adicional ao paciente. A presença de defesa abdominal involuntária indica irritação peritoneal e, a partir de então, não é necessário percuti-lo à procura de mais sinais.
Já a valia da palpação consiste em distinguir a dor superficial, correspondente à parede abdominal, da dor de origem profunda, o que pode auxiliar na investigação diagnóstica.
Exame da pelve e nádegas
Há de se ter atenção especial à avaliação da pelve, uma vez que hemorragias pélvicas ocorrem rapidamente e podem levar o paciente a óbito. Nesse sentido, alguns sinais clínicos devem ser observados, como: a existência de hipotensão inexplicável, hematomas no escroto, sangue no meato uretral, discrepância entre o tamanho de membros ou deformidades de rotação da perna sem fraturas ósseas evidentes. Caso estejam presente, não se deve manipular a pelve sob risco de deslocamento de coágulos que tenham se formado na região.
A colocação do dispositivo de estabilização pélvica, posicionado no trocanter maior, pode ser necessária e é fundamental para evitar o óbito. A palpação do anel pélvico à procura de fraturas deve ser cuidadosa, por isso não se recomenda a manobra de distração (girar a pelve internamente e em seguida externamente) na avaliação inicial devido ao alto risco de agravamento da lesão ou gerar sangramento recorrente.
Lesões penetrantes na região glútea (das cristas ilíacas até as pregas glúteas) estão associadas a um incidência de até 50% de lesões intra-abdominais significativas (incluindo lesão do reto abaixo da reflexão peritoneal).
Exame da uretra e períneo
A avaliação da uretra consiste basicamente em procurar por sangramentos do canal uretral e de hematomas no escroto e períneo, indicativos de lesão da estrutura anatômica e contraindicação à passagem de sondas vesicais. A palpação da próstata durante o toque retal não é considerada um sinal confiável de lesão uretral.
Exame retal e vaginal
O exame retal é indicado para pacientes que sofreram trauma contuso, visando certificar o tônus muscular e a integridade da mucosa do reto, além de permitir a identificação de fraturas pélvicas palpáveis (crepitação da parede posterior do reto, fragmentos ósseos pélvicos). Em pacientes com trauma penetrante, os objetivos do toque retal são a avaliação do tônus esfincteriano e busca de sangue na luz do reto, que pode indicar perfuração intestinal.
Já o exame vaginal é realizado nos casos em que uma fratura óssea pélvica ou ferimentos penetrantes possam ter causado lacerações, e caso a paciente tenha sofrido lesão transfixante de pelve por projétil de arma de fogo. Caso a mulher esteja menstruada, é necessário procurar por absorventes externos ou internos, pois, se esquecidos no local, podem se tornar um foco posterior de sepse.
Exames Complementares
Os exames complementares podem evidenciar informações diagnósticas importantes. Contudo, é imprescindível ressaltar que, caso haja a necessidade de transferência do paciente para centros de trauma, os exames complementares não devem ser realizados, uma vez que podem atrasar o transporte deste e implicar o aumento da chance de óbito.
É interessante observar que a ultrassonografia à beira leito vem ganhando bastante espaço nos atendimentos de emergência nos últimos anos, devido ao seu alto poder de informação, podendo ser utilizada naqueles pacientes com alterações hemodinâmicas nos quais é necessário uma rápida exclusão de sangramentos intra-abdominais.
FAST e e-FAST
O FAST (Focused Assessment with Sonography for Trauma) é utilizado para investigar sangramentos intra-abdominais, sendo a necessidade de laparotomia sua única contraindicação.
Nele inclui-se o exame de 4 regiões: o saco pericárdico, o espaço hepatorrenal (espaço de Morrisson), espaço esplenorrenal e a pelve (fundo de saco de Douglas). Se positivo, significa presença de líquido livre em alguma dessas janelas. O e-FAST (extended FAST) incluindo a avaliação adicional dos espaços pleurais direito e esquerdo.
Lavado Peritoneal Diagnóstico (LPD)
Outro exame rápido que pode ser feito na sala do Trauma é o lavado peritoneal diagnóstico, em busca de sangramento intra-abdominal. É mais comumente realizado em traumas contusos nos pacientes instáveis ou em trauma penetrante com múltiplas entradas ou trajeto tangencial. Em locais onde o FAST e a tomografia estão disponíveis, seu uso é raro, uma vez que é um procedimento invasivo e que requer habilidades cirúrgicas para sua realização.
Radiografia (Raio-X)
O Raio-X (RX) abdominal em incidência ântero-posterior (AP) é preconizado para pacientes hemodinamicamente estáveis com suspeita de lesões toracoabdominais. O exame pode evidenciar a presença de hemo e/ou pneumotórax, bem como indicar a presença de ar intraperitoneal. Além disso, se realizado em duas incidências (AP e lateral), pode indicar a localização espacial de corpos estranhos.
Em se tratando da pelve, o RX realizado em AP pode evidenciar a existência de fraturas pélvicas. Caso o paciente esteja hemodinamicamente instável ou com dor em região pélvica, a realização do exame pode esclarecer a origem da hemorragia.
Tomografia computadorizada
A Tomografia Computadorizada (TC) deve ser utilizada somente em pacientes com estabilidade hemodinâmica que podem ser retirados da sala de reanimação e nos casos em que a laparotomia não é indicada. A TC pode trazer informações sobre a existência e a extensão de lesões de órgãos intra-abdominais, retroperitoneais e pélvicos, que são de difícil avaliação pelos exames citados acima. É importante ressaltar que lesões gastrointestinais, diafragmáticas e pancreáticas podem requerer avaliação adicional, como a laparotomia, principalmente quando houver presença de líquido livre na cavidade abdominal na ausência de alterações hepáticas e esplênicas.
Referência
1 – Chicago, USA. ATLS – Advanced Trauma Life Support for Doctors. American College of Surgeons: Chicago: Committee on Trauma. 10a. Ed., 2018.